A variabilidade interanual do Atlântico Tropical

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A VARIABILIDADE INTERANUAL DO ATLÂNTICO TROPICAL E SUA INFLUÊNCIA NO CLIMA DA AMÉRICA DO SUL


Paulo Nobre

Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos - (CPTEC)

Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (INPE)


Há evidências observacionais, teóricas e resultados de modelos de circulação geral da atmosfera, que as condições oceânicas e atmosféricas sobre a Bacia do Atlântico Tropical influem fortemente na variabilidade interanual do clima sobre as Américas (Hastenrath and Heller, 1977; Moura and Shukla, 1981; Hastenrath, 1984; Chu, 1984; Hastenrath, 1990; Nobre and Shukla, 1996) e África (Parker et al., 1988; Folland, 1991).

Particularmente sobre a América do Sul, as regiões mais significativamente influenciadas pelas circulações atmosféricas e oceânicas do Atlântico Tropical são:

O leste da Amazônia (Molion, 1987; Molion, 1993; Nobre and Shukla, 1996);

A Região do Nordeste do Brasil (Namias, 1972; Hastenrath and Heller, 1977; Markham and McLain, 1977; Moura and Shukla, 1981; Hastenrath, 1984; Hastenrath, 1990; Alves et al., 1993; Nobre, 1993; Rao et al., 1993; Nobre and Shukla, 1996);

O extremo sul do Brasil e Uruguai (Diaz and Studzinski, 1994).

O espectro de freqüências dos processos oceânicos e atmosféricos sobre o Atlântico é largo, englobando a variabilidade intrasazonal, interanual e interdecadal das correntes oceânicas e do campo de temperatura das camadas superiores do mar. Além disso, as oscilações de freqüência decadal detectadas nos campos atmosféricos de vento e precipitação sobre o Atlântico Tropical são possivelmente induzidas pelas condições de contorno oceânicas com variação lenta do ambiente marinho. Além disso, o ciclo anual dos ventos e do calor sensível armazenado nas camadas superiores do Atlântico Tropical sofrem forte influência dos sistemas de monção dos continentes circunjacentes, fazendo com que a variabilidade interanual dos ventos e da temperatura da superfície do mar (TSM) sobre o Atlântico sejam moduladas pelo ciclo anual do aquecimento solar (Hastenrath, 1984). Assim, o padrão espacial predominante do ciclo anual e da variabilidade interannual das TSM e ventos à superfície sobre o Atlântico apresenta uma estrutura norte-sul mais pronunciada do que a estrutura leste-oeste.

O fenômeno El Niño-Oscilação Sul (ENOS) sobre o Pacífico Equatorial, e o gradiente meridional de anomalias de TSM sobre o Atlântico Tropical modulam conjuntamente uma grande parte da variância interanual do clima sobre a América do Sul. A combinação das circulações atmosféricas anômalas induzidas pelas distribuições espaciais de TSM sobre os oceanos Pacífico Equatorial e Atlântico Tropical afetam o posicionamento latitudinal da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT) sobre o Atlântico, influenciando desta forma a distribuição da pluviometria sobre a bacia do Atlântico e norte da América do Sul. No entanto, embora a variabilidade interanual das TSM e ventos sobre o Atlântico Tropical seja significativamente menor do que aquela observada sobre o Pacífico Equatorial, essas variáveis têm profunda influência na variabilidade climática sobre a América do Sul, principalmente sobre a Região Nordeste do Brasil (Hastenrath, 1984; Nobre and Shukla, 1996).

Sobre a Região Sul e Sudeste do Brasil, por outro lado, os efeitos dos fenômenos ENOS se fazem sentir de modo mais intenso, tanto nos campos de anomalias sazonais de precipitação como temperatura do ar, embora hajam evidências observacionais de que a variabilidade das TSM sobre o Atlântico Sul influencia o clima da Região Sul e Sudeste do Brasil, e Uruguai (Diaz and Studzinski, 1994).

Em alguns anos, notadamente aqueles nos quais o fenômeno ENOS coincide com a época da estação chuvosa sobre o norte do Nordeste (de fevereiro a maio), embora as distribuições de TSM sobre o Pacífico Equatorial tenham um efeito decisivo na pluviometria sobre o norte do Nordeste e leste da Amazônia (e.g. 1958, 1972, 1983), os fenômenos atmosféricos e oceânicos sobre a bacia do Atlântico Tropical são estatisticamente mais significativos para a variabilidade interanual do clima sobre o Nordeste do Brasil do que os fenômenos sobre o Pacífico (Chu, 1984; Hastenrath et al., 1987). As relações entre os padrões anômalos de TSM do Atlântico com o clima do NEB foram inicialmente abordadas nos artigos de Serra (1941) e posteriormente documentadas por Hastenrath e Heller (1977).

O padrão de anomalias de TSM sobre o Atlântico Tropical comumente associado a anomalias pluviométricas sobre o Nordeste e referido na literatura como "padrão de dipolo" apresenta anomalias de TSM com sinais opostos ao norte e ao sul do equador sobre o Atlântico Tropical (Hastenrath and Heller, 1977; Moura and Shukla, 1981). Esse padrão de anomalias de TSM propicia a ocorrência de gradientes meridionais de anomalias de TSM, os quais impactam fortemente na posição latitudinal da ZCIT, modulando assim a distribuição sazonal de precipitação pluviométrica sobre o Atlântico Equatorial, parte norte do Nordeste do Brasil, até a parte central da Amazônia (Nobre and Shukla, 1996). Em anos nos quais as TSM sobre o Atlântico Tropical Sul (entre a linha do equador e 15S) estão mais altas do que a média de longo período durante março-abril-maio (MAM) e o Atlântico Tropical Norte (entre 5N e 20N) está menos aquecido do que a média, há formação de um gradiente meridional de anomalias de TSM no sentido de norte para sul. Nessa situação observa-se concomitantemente pressão ao nível do mar (PNM) mais baixa do que a média sobre o Atlântico Sul e mais alta do que a média sobre o Atlântico Norte, os alísios de sudeste mais fracos do que a média e os alísios de nordeste mais intensos do que a média, o eixo de baixa pressão à superfície e confluência dos ventos alísios deslocado mais para sul, relativamente ao seu posicionamento médio, e totais pluviométricos acima da média sobre o norte do Nordeste (Hastenrath and Heller, 1977).

Contudo, há evidências observacionais de que o padrão espacial das anomalias pluviométricas que causam seca ou inundações sobre o Nordeste do Brasil têm escala espacial muito maior do que o próprio Nordeste, englobando também o Atlântico Equatorial até a parte central da Amazônia (Molion, 1993; Nobre and Shukla, 1996). Além disso, o excesso ou deficiência de precipitação ao sul do equador está associado não somente ao deslocamento latitudinal anômalo da ZCIT, mas principalmente à duração do período da incursão da ZCIT ao sul do equador (Nobre et al., 1989; Nobre and Shukla, 1996). Em anos chuvosos sobre o Nordeste, nos quais também chove acima da média sobre a Amazônia e Atlântico Equatorial, a ZCIT permanece ao sul de suas posições latitudinais médias até abril, enquanto em anos de seca a ZCIT retorna ao Hemisfério Norte já em março. Além disso, há evidências observacionais de que os mecanismos responsáveis pelo deslocamento latitudinal da ZCIT estejam associados a uma cadeia de processos de interação entre o oceano e a atmosfera, envolvendo o acoplamento lateral com distúrbios atmosféricos extra-tropicais de ambos hemisférios. Estes contribuem para o aparecimento de anomalias de TSM ao norte e ao sul do equador com sinais opostos, formando assim um gradiente meridional de anomalias de TSM, responsável pelo deslocamento e permanência da ZCIT mais para o sul ou para o norte.

Baseado nos vários trabalhos empíricos e de modelagem numérica sobre a forte influência das TSM tropicais, particularmente do Atlântico Tropical e Pacífico Equatorial, sobre o norte do Nordeste, foram desenvolvidas fórmulas estatísticas de regressão múltipla com a finalidade de elaborar prognósticos quantitativos dos desvios pluviométricos sobre o norte do Nordeste durante a estação chuvosa de março-abril-maio (Hastenrath, 1990; Ward and Folland, 1991). Mais recentemente, mostrou-se viável o uso de modelos de circulação geral da atmosfera forçados com condições de contorno prescritas para simular e prever anomalias pluviométricas sazonais sobre o Nordeste, com dois a três meses de antecedência da estação chuvosa. Dentre os centros que têm utilizado MCGAs para elaborar previsões experimentais dos desvios pluviométricos sobre o Nordeste estão o SCRIPPS, nos EUA, e o CPTEC no Brasil. Os resultados de previsões de anomalias climáticas sazonais (ver seção.....) têm se mostrado alentadores, provido que os campos de TSM fornecidos aos MCGAs com previsões das condições de contorno para o período da previsão não se desviem exageradamente dos campos observados. Desta forma, o elo mais fraco do processo de elaborar previsões sazonais de anomalias pluviométricas sobre o Atlântico Equatorial, Nordeste do Brasil e Amazônia tem sido a previsão das TSM sobre os oceanos tropicais, independentemente da utilização dos métodos de regressão múltipla ou modelagem numérica global como ferramentas de previsão atmosférica.

Para o Pacífico Equatorial já existe uma hierarquia de modelos estatísticos e dinâmicos, e mesmo modelos acoplados oceano-atmosfera, que são utilizados para elaborar prognósticos de anomalias de TSM com até 18 meses de antecedência. Dentre esses podem ser citados os prognósticos experimentais do NCEP, COLA, IRI, todos nos EUA. Já sobre o Atlântico Tropical, os esforços em modelagem do sistema acoplado são mais recentes (Zebiak, 1993; Nobre and Kirtman, 1996), e a base observacional de coleta de dados é esparsa e dependente das observações de navios e medidas de TSM estimadas por satélites.

Referências

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